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registro: 20-02-2011
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O pequeno monge



 Sobre o poder da Igreja Católica e das religiões em geral, há uma reflexão magnífica do gigante alemão Bertolt Brecht em sua peça de teatro chamada “Vida de Galileu”, escrita entre 1938 e 1939. Em uma Itália pouco anterior a Giambattista, Galileu, após ser interrogado pelo tribunal da Santa Inquisição, recebe a visita de um personagem chamado “o pequeno monge”:
 
“O Pequeno Monge – Mas quero lembrar outras razões. O senhor permita que eu lhe fale de mim. Nasci no campo, sou filho de camponeses. São gente simples. Sabem tudo sobre a oliveira, mas pouco além disso. Observando as fases de Vênus, vejo os meus pais diante de mim, sentados diante do fogão, com a minha irmã, comendo o seu queijo. Acima deles vejo o teto, escurecido pela fumaça de muitos séculos, e vejo bem as suas mãos velhas e deformadas, segurando a colher pequena. A vida deles não é boa, mas até a sua desgraça manifesta uma certa ordem. São os vários ciclos, desde o dia de lavar o chão, até as estações no olival, até o pagamento dos impostos. Há regularidade nos desastres que eles sofrem. As costas de meu pai vergam, mas não é de uma vez, é um pouco mais em cada primavera, trabalhando nas oliveiras; e os partos, é a mesma coisa, vinham regularmente, até deixar a minha mãe acabada. Para subir por esses caminhos desgraçados, arrastando um cesto e pingando suor, para parir filhos os filhos, e até para comer, é preciso ter força, e essa força de onde é que eles tiram, se não do sentimento da constância e a necessidade, que lhes vem olhando os campos, olhando as árvores, que reverdecem todos os anos, vendo a igreja pequena, ouvindo a Bíblia aos domingos. Eles estão seguros – foram ensinados assim – de que o olho de Deus está posto neles, atento, quase ansioso, de que o espetáculo do mundo foi construído em torno deles, para que eles, os atores, pudessem desempenhar os seus papéis grandes ou pequenos. Que diria a minha gente se ouvisse de mim que moram num pedaço pequeno de rocha que gira ininterruptamente no espaço vazio, à volta de outra estrela, um pedaço entre muitos, sem maior expressão? Para que tanta paciência e resignação diante da miséria? Elas não ficariam sem cabimento? Qual é o cabimento da Sagrada Escritura que explicou tudo e que disse que tudo é necessário, o suor, a paciência, a fome, a submissão, se ela agora está toda errada? Não, eu vejo os olhos deles ficarem ariscos, vejo como descansam a colher, vejo como eles se sentem traídos e esbulhados. Então o olho não está posto em nós, é o que pensam. Nós é que precisamos cuidar de nós mesmos, sem instrução, velhos e acabados como estamos? Nenhum papel nos foi destinado, afora este papel terreno e lamentável, numa estrela minúscula, inteiramente dependente, que não tem nada girando à sua própria volta? Não há sentido na nossa miséria; a fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido; esforço é vergar as costas e arrastar, não é mérito. O senhor compreende agora a verdadeira misericórdia maternal, a grande bondade da alma que eu vejo no Decreto da Santa Congregação.

 
Galileu – Bondade da alma! Provavelmente, o que o senhor quer dizer é só que não sobrou nada, que o vinho foi bebido, que a boca deles está seca, de modo que o melhor é beijar a batina! Mas por que não há nada? Por que é que só é ordem, neste país, a ordem da gaveta vazia? E necessidade só existe a de se matar no trabalho? Em meio das vinhas carregadas, ao pé dos trigais! Seus camponeses pagam a guerra que o Vigário do suave Filho de Deus provoca na Espanha e na Alemanha. Por que ele põe a Terra no centro do universo? Para que o trono de Pedro possa ficar no centro da Terra! É isso que importa. O senhor tem razão, não são os planetas que importam, são os camponeses. E o senhor, não me venha com a beleza dos fenômenos que o tempo redourou! O senhor sabe como a ostra margaritífera produz sua pérola? É uma doença de vida ou morte. Ela envolve um corpo estranho, intolerável para ela, um grão de areia, por exemplo, numa bola de gosma. Ela quase morre no processo. A pérola que vá para o diabo. Eu prefiro a ostra com saúde. A miséria não é condição das virtudes, meu amigo. Se a sua gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Hoje, a virtude dos exaustos nasce da terra exausta, e eu abomino isso. Meu caro, as minhas novas bombas d’água fazem mais milagre do que a sua ridícula trabalheira sobre-humana. – “Crescei e multiplicai-vos”, pois os campos são estéreis e a guerra vos dizima. O senhor quer que eu minta à sua gente?”